terça-feira, 14 de fevereiro de 2012



Circe

No conto de Cortázar, a Circe é Délia, que fica noiva pela terceira vez; os outros noivos morreram - enfartou, suicidou. Ela matou-os, diz a vizinhança, porém Mário despreza tais boatos e a namora. A paixão, entretanto, não o faz surdo nem cego e, quando, oficialmente noivos e a sós, Délia pede que ele prove um bombom de sua lavra, antes de morder ele o quebra e, misturados com menta e maçapão, há pedaços de uma barata.
Bombons com mau recheio existem desde antes da invenção do chocolate – vide Adão. De nosso edênico ancestral, não se poderia esperar que desconfiasse de coisa nenhuma; seu sacrifício ensinou-nos (ou deveria) a não ser tão inocentes.
A mídia servil ao capital oferece em abundância quitutes venenosos, a gordura adocicada da futilidade a entupir os neurônios, o salitre da descrença a reduzir o inconformismo à impotência, aromas de respeito à individualidade disfarçando a toxina do cada-um-por-si, ou puritanismo fastifúdi com ovos da tênia fascista.
Não aceite doces de desconhecidos, diziam nossas mães ou avós; palavras sábias, insuficientes. Há gente conhecida de cujas mãos não devemos morder nada sem abrir, olhar, cheirar primeiro. Brincar de fecha-os-olhos-e-abre-a-boca com a Mídia S.A. é como beijar os anéis de Calígula.
Mário enxergou a tempo no rosto lindo da noiva os traços da Circe; tinha os olhos abertos pela história. A nós também ela diz de quem podemos esperar delícias venenosas; quem a ouve não bebe de primeira na taça da Lucrécia Mídia.