terça-feira, 9 de outubro de 2012


DE ESPÍRITOS E PORCOS

Vamos então falar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, eu disse, a Kayane levantou e foi saindo, perguntei qual o problema, esse livro, ela disse, é aquela coisa espírita, sicogafria, segurei o veneno e voltei à sala, um terço cochilava; a Noelle perguntou agora prof?, eu fiz que sim, ela pôs o celular para gravar: a narração em primeira pessoa...
Na sala dos professores o Marcelo de bio louvou-me a persistência, hoje eu dei evolução, amanhã dou design, paciência, vocês estão adiantados, a Elza disse, ainda estou tentando dar D. Pedro sem Marquesa, Monarquistas?, chutei, não, as Mães Contra o Concubinato; eu propus ir ver Di Cavalcanti, o Fábio, foi vetado, que surpresa, o Marcelo olhando o teto, mas talvez chova à noite e a colônia seja interditada; fosse ou não, troquei com a Rita a primeira de amanhã, tinha esquecido, precisava de uma hora com a Cida CP.
Na terça quando cheguei fazia sol, a Kayane desfilava de short e bustiê, com um cartaz a canetão contra ‘pregassão espirita’, quase deu saudade de quando sabiam escrever demoníaco e lascívia – tratava-se então de abolir Jorge, como o tempo passa; disse à Sara que podia assistir à aula hoje, a Rita vai dar gramática, ela ficou com a ficha de recusa na mão enquanto procurava na mochila um envelope, tentou que eu pegasse tudo junto, não caí, levei só os formulários do controle parental.
A Cida ia lendo fichas de uma pilha, vez por outra a mão procurando o maço de cigarros pela mesa: Grande Sertão Veredas, As Famílias Contra o Travestismo; Inocência, Frente de Combate ao Abuso por Médicos, os nomes estão cada vez maiores, tentamos rir, tomamos mais café; Navio Negreiro, todo?, Sindicato da Navegação Comercial; Vidas Secas, os assassinatos de animais, estava demorando; Morte e Vida Severina, enterro irregular, Federação dos Agentes Funerários; Hamlet, tá misturado, lê, violação de sepultura, a mesma Federação.
Essa é engraçada, mostrou duas clipadas, as duas Macunaíma, as duas a feijoada, Ação Contra a Obesidade e Federação dos Produtores de Feijão, rimos, tomamos mais café; mais Machado, o quê agora?, O Alienista, Congresso de Psiquiatria; Canaã, nesse nem eu pensei, a Associação de Suinocultores do Espírito Santo pensou, santo deus; Lobato, sobrou alguma coisa?, Elias Turco, mas não tem Elias Turco sem Nastácia, tem?, não lembramos.
Sem Nastácia, sem Saci, sem Caçadas, sem pirlimpimpim, sem a Chave do Tamanho, quem?, alguma coisa das Pessoas Pequenas, Gulliver, saudade, divagamos indo para a área atrás da copa, fumar e olhar um pouco o mato crescer.

(Provocado pelo conto Much Ado For Nothing, de Connie Willies)



segunda-feira, 30 de julho de 2012


NA BOA

Sei que não sou bonita, a natureza se empenhou em que não me notassem. Não pareço muito esperta, não sei truques para impressionar, só para ser deixada em paz. Cuido de sobreviver, e não são poucos os que se opõem; prontos a se alimentarem da minha ruina, de todos os lados me atacam e a mim, ser sem armas, resta esconder-me, em mim mesma, primeiro, depois em meio à massa que me dá sustento. Aos atacantes viventes juntam-se os ditos inanimados que, no entanto, teimam em mover-se, muitas vezes em escala catastrófica. Também os excessos do clima me ameaçam: alagamentos que me põem em fuga a todo custo acima, deixando cama e mesa; frio que endurece a terra, enrijece o corpo e retarda as maturações; sol causticante na pedra, do qual ao menos posso abrigar-me ao pé de uma porta, e esperar que não se abra ela e alguém diga grosserias como: ai, que nojo, uma lesma.

segunda-feira, 2 de julho de 2012


MARGINAL VIVO OU MORTO


Vontade de assar numa fogueira de película vencida a Ministra Holanda quando lemos sua nota sobre Carlão Reichenbach, para ela tachado de cineasta marginal só porque trabalhou na Boca, até que vemos na tevê Helena Ignez achar injusto o mesmo marginal em relação a Sganzerla, apesar do Bandido e da frase do Oiticica – a Boca ela não cita.

Não é exigir de Helena que se lembre de beber na mesa ao lado da de Jean Garret, não é querer que a Ministra tenha lido Jairo, é só pensar que marginal era esse, era marginal a quê, em quê não se enquadrava, por que o produziu Galante e não Barretos, Farias?

Porque era ditadura, ordem era opressão, marginal era herói – pobre sociologice. A margem, hoje, é outra, Luz e Candeias morreram, a Boca é Cracolândia, filme fora da corrente é alternativo, é não comercial, independente, o cacete, marginal são os nóias.

A posliberdade condena (excuzê mua, Sartre) todos a estarem dentro, fora é o caos, o Não, reino de exus caralhudos. Ser incluído é preciso, viver não é, crianças, a rua é para os ratos, vá ser feliz no face, infeliz também pode, não pode é não ter tribo, tem que assumir, ser público – público, eu disse, não povo.

sexta-feira, 15 de junho de 2012


SE ACASO

A grade não estaria trancada. Diante dela uma escadaria de madeira azul descascada, uns vinte degraus, mas não seria por ela, um portãozinho com igual pintura abriria a um patamar de ladrilhos, um corredor e um pátio. Haveria um tanque de lavar, banheiros, corredor, janela, corredor, seria este à esquerda. Teria portas nos lados, chão cimentado úmido e nenhuma lâmpada acesa; no final se abriria outro pátio, menor e cego exceto por uma escada íngreme de corrimão muito alto, acesso a um quadrado com muretas com o Coração em frente, e janelas e atrás, à direita, uma porta grande e um corredor. Estaria um pouco escuro mesmo de dia, haveria vitrines com coisas antigas e, dados alguns passos, uma escada em caracol que subiria e, do meio para cima, pareceria mover-se. No entanto, não se moveria até o fim, este sendo uma salinha atulhada com uma porta baixa, a qual daria a um vestíbulo com uma cadeira em um canto e a porta da Cabine de Projeção, uma outra porta e mais uma escada, essa felizmente para baixo. Por trás das cortinas estaria a sala de projeção, vazia, e sob a tela branca a saída teria nos dois lados banheiros; qualquer um deles teria uma porta para fora e, indo por uma rua de paralelepípedos, casas à esquerda, capim e córrego à direita, findaria a rua em uma vista infinita da cidade. Qualquer dos caminhos descendo pela praça levaria a um pavilhão de concreto e vidro, desocupado, e uma rampa para baixo, com paredes de tijolos transparentes e, atravessada com cuidado a avenida mal iluminada e evitados os porcos no canteiro, um pórtico entre dois grandes nus de mármore negro. O guichê de Informações de pouco serviria. O correto seria cruzar a passarela bem em frente e, na outra ala, encontrar a praça de alimentação; um enorme banner meio que esconderia umas catracas. Pelos buracos nas paredes de madeira vazariam hálitos, uma placa amarela gritaria PARE. No estacionamento estariam poucos carros e o elevador de carga saltaria à vista, e barulentamente subiria e se abriria a um amplo living, cozinha americana, área de serviço conjugada à laje de cobertura. Entre várias chaminés, uma porta de ferro e vidro sujo, um batente perigoso, um salão decorado com balões azuis e brancos, e, por trás das cabines de tradução simultânea, depois do bebedouro se revelaria aberto um dos painéis de madeirite branco-sujo, e a copa anexa daria para um túnel com tubulações. A passagem para pedestres se estreitaria e, aqui e ali, faltariam tampas aos bueiros; o túnel seria, agora, bem iluminado e para automóveis, ainda que não passasse, no momento, nenhum. Ao lado da saída, um caminho feito a pés no capinzal, um caminho poeirento cruzaria os trilhos enferrujados, e estes para o lado errado não dariam em nada, mas para o outro logo encontrariam a estação velha. Na sala 1 do anexo morcegos protestariam, e por trás da estante maior ficariam a carceragem e o mezanino, por entre cujas mesinhas de falso mármore e cadeiras de metal haveria uma passagem apertada para nada menos que as portas de mogno e vidro bizotê. Além delas um cachorro latiria atrás de um portão, os corredores avarandados circundariam a chuva e, após muitas batidas supostamente discretas na porta à direita dos caixotes, de trás da janela vizinha diriam que ela não mora mais aqui.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

SAQUE HISTÓRICO

Amigos estão finalizando um livro sobre História da África – aguardem -, e têm um problema: imagens. Usar em seu livro a foto, por exemplo, de uma figura Nok (Nigéria, 500 aC), é pagar uma fortuna a marchands que não hesitam em misturar o milenar ao envelhecido.
A Europa enfeitou museus e praças, por séculos, com objetos exóticos – leia-se arrancados de seus lugares e seus donos. O saque oficial, ao menos, foi contido – hoje, na guerra, se destrói, não se carrega -, mas o mercado é... incontível.
Bens arqueológicos importantes saem facilmente, misturados a similares recentes, de muitos dos países africanos, cujos governantes ou não conseguem ou não querem muito mesmo estancar a sangria. Tornam-se, as peças e suas imagens, então posse e objeto de ganho de alguém que nada tem a ver com elas, não sabe, às vezes, o que são, para que servem, expõe na sua sala o que foi feito para ser largado bem longe de casa.
A história de muitos povos africanos se conta de memória ou pelas obras. O acesso livre às imagens – pelo menos – dessas obras é direito desses povos e de todos os humanos. Mas, o mercado internacional de arte não vive só de bichos no formol, também vai de história roubada.



 zona de conforto

é

 puteiro chique

?

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012



Circe

No conto de Cortázar, a Circe é Délia, que fica noiva pela terceira vez; os outros noivos morreram - enfartou, suicidou. Ela matou-os, diz a vizinhança, porém Mário despreza tais boatos e a namora. A paixão, entretanto, não o faz surdo nem cego e, quando, oficialmente noivos e a sós, Délia pede que ele prove um bombom de sua lavra, antes de morder ele o quebra e, misturados com menta e maçapão, há pedaços de uma barata.
Bombons com mau recheio existem desde antes da invenção do chocolate – vide Adão. De nosso edênico ancestral, não se poderia esperar que desconfiasse de coisa nenhuma; seu sacrifício ensinou-nos (ou deveria) a não ser tão inocentes.
A mídia servil ao capital oferece em abundância quitutes venenosos, a gordura adocicada da futilidade a entupir os neurônios, o salitre da descrença a reduzir o inconformismo à impotência, aromas de respeito à individualidade disfarçando a toxina do cada-um-por-si, ou puritanismo fastifúdi com ovos da tênia fascista.
Não aceite doces de desconhecidos, diziam nossas mães ou avós; palavras sábias, insuficientes. Há gente conhecida de cujas mãos não devemos morder nada sem abrir, olhar, cheirar primeiro. Brincar de fecha-os-olhos-e-abre-a-boca com a Mídia S.A. é como beijar os anéis de Calígula.
Mário enxergou a tempo no rosto lindo da noiva os traços da Circe; tinha os olhos abertos pela história. A nós também ela diz de quem podemos esperar delícias venenosas; quem a ouve não bebe de primeira na taça da Lucrécia Mídia.